Saudades que não passam

Por José Sarney

Vou fazer um interregno entre os temas políticos, as Olimpíadas, que mobilizam todas as atenções, e as mazelas nacionais, para abordar um tema pessoal que mexe com meus sentimentos e faz parte dos amores da minha vida.

Passei um ano e meio sem vir ao Maranhão, condenado ao isolamento domiciliar, sem culpa nenhuma, sem poder sair de casa pelo medo da pandemia. Fiquei ali, debruçado sobre meus livros e a minha compulsão de escrever, e tive medo de tudo, mas o que mais me tocou a vaidade e o cotidiano foi o medo de perder o prazer de andar. Desaprendi de andar e passei lutando para reaprender a levantar os pés do chão, para não ficar com aquele andar de velho, arrastando os pés.

Quando me perguntavam o porquê de minha reclusão tão forte dizia que era o desejo de ajudar o Criador a manter-me por mais alguns anos com o gosto da vida. E acrescentava, já com o otimismo de que era lá que o Criador me receberia: — Com a minha idade, se eu tiver alguma coisa, estou com o pé no Céu. Os inimigos diziam “com o pé no inferno”. Eu replicava que não tenho inimigos, tive só adversários e estou acabando com todos: cumprindo o pedido de Deus “perdoai os seus inimigos”, já perdoei a todos. Deus foi tão generoso comigo que nunca poderia negar-Lhe esse pedido, já que Ele me deu um temperamento voltado a amar o próximo e ser dado ao diálogo, a compreender os outros e nunca desejar mal a ninguém.

E durante esse período levei o mais longo tempo de minha vida sem vir à terra onde abri os olhos para o mundo: o Maranhão. Cunhei uma frase que caracteriza esse meu amor ao Maranhão, dizendo que era minha terra e minha paixão e, quando estou fora, não passo um dia sem ter saudades dele.

Nesse tempo em que não saía de casa, comecei a sentir de tudo, solidão, banzo, tristeza, dores nos braços, nas pernas, nas costas. Minha grande médica, que me assiste em Brasília, Dra. Núbia Vieira, já quase não tolerando mais as minhas queixas e não encontrando motivos para tantos males, disse-me — ajudada pelo frio danado que passou a fazer ali, com temperaturas não raro abaixo de 10º — que tinha chegado a um diagnóstico sobre meus males: “Sabe o que você tem e eu descobri como uma das mais raras doenças? Saudade. E para o que lhe falta não há melhor remédio que o descoberto pelos antigos: o calor do seu Maranhão.” Santo remédio! Não é que estão me julgando mais jovem, mais alegre e mais bonito?…

Arrumei as malas e meus trens, a modo de Minas, e vim passar uma temporada aqui, vendo “o mar do Maranhão / …onde o céu caiu no chão”, copiando a canção do Nonato Buzar.

Mas não podia terminar este artigo sem dizer que o Amapá, minha segunda terra, é também uma saudade que não passa.

O cansaço da solidão

Por José Sarney

O mundo começa a se recuperar, com alívio, de um dos maiores problemas da pandemia: o cansaço da solidão, o desgaste psicológico do isolamento. Infelizmente, aqui no Brasil, ainda vamos continuar nessa provação de ficar longe da família, dos amigos, dos companheiros de trabalho, de toda a sociedade.

Há um ano, ainda no espanto com as dimensões da doença, eu lamentava o meio milhão de mortos no mundo. Hoje esse é o número no Brasil. Há mais de um milhão de pessoas em tratamento, as UTIs estão cheias, e os dezesseis milhões que já tiveram a doença ainda sofrem com ela.

Logo no começo da pandemia se pensava na dificuldade de conseguir a vacina, imaginando que logo estaríamos livres da quarentena. A vacina veio mais rápido do que o previsto, mas, como não seguimos os cientistas, ainda temos que repetir: “A única solução é evitar o contágio, com o isolamento, e, fora dele, com o uso de máscaras por todas as pessoas.”

Ao longo desse isolamento tenho escrito sobre solidão. Falei de como esse sentimento vinha misturado com medo, crescendo dentro de nós a falta dos amigos e de como não fomos feitos para isso.

Quando surgimos como espécie distinta entre os hominídeos, já éramos há muitos milhões de anos animais sociais. Cada vez mais fomos contando uns com os outros, enriquecidos pelo sentimento de solidariedade e colaboração. Juntos ficamos fortes para caçar e competentes para cultivar. Assim pudemos começar a construir habitações e com elas fazer cidades. Mais ainda, foi por e para podermos colaborar que desenvolvemos linguagens, seja numa mutação, como crê Chomsky, seja aos poucos, como na hipótese do altruísmo recíproco, que aliás se baseia na necessidade de honestidade — isto é, nada de mentira ou fake news.

Na sociedade em que nos juntamos para sobreviver, há os que se isolam, em um espiritualismo intenso. O cristianismo está povoado de eremitas e anacoretas, de São Jerônimo a Charles de Foucauld, mas Lao Zi, fundador do taoísmo, o fizera muito antes.

Mas o comum dos mortais, como nós, não sabe viver em isolamento. Por mais que professemos, como faço e pratico, o nosso amor pelo livro — ou pela música, pelos jogos solitários ou o que seja —, há o momento em que precisamos de ter o contato direto com outras pessoas, com outras almas.

Já lamentava o poeta: “Alma minha gentil, que te partiste … E viva eu cá na terra sempre triste.” Vivemos tristes o tempo todo, pois são tantos os amigos que partiram e mais ainda os amigos que não vemos, com quem não estamos, que corremos o risco de nos amofinar no desencanto do viver.

Mas temos que sacudir esse sentimento. Vencer a doença tem que ser nossa prioridade, nem pensar em sermos por ela derrotados. Sem esquecer as que ficaram pelo caminho, em nome de cada uma e de todas as quinhentas mil vítimas, temos que lutar para sobreviver, e sobreviver formando uma sociedade mais justa, em que a língua sirva para dizer a verdade e para construir a justiça social.

Estamos cansados, cansados de solidão, mas ainda temos fé. E fazendo o que sempre aconselho — vacina, máscara, isolamento —, vamos acabar com a solidão e o com o cansaço.