MEU NOME É GARCIA
Faz um sol claro de rachar a moleira, manhã de sábado, mês de agosto, céu azulado, sem urubus. Entroncamento, vila de duas dúzias de casebres, se preparava para a feira de troca-troca que ali acontecia todo final de mês. A farinha de puba vinha de Guanaré; a abóbora da vazante do Riacho Chorozinho; do Limão chegava mandioca, macaxeira, milho, fava e feijão. Toda a redondeza participava da feira: Capão Novo, Barro Brabo, Rosarinho, Independência, Pau-Deitado, Sangue, Beiço Caído, Codozinho… de tal conformidade que dezenas de povoados, cada qual com suas produções, se encontravam na maior algazarra de secos e molhados, pato, galinha, porco, bichos de todas as espécies, inclusive tatu, paca, todo tipo de caça, e até cobra jibóia e cascavel.
Pois foi nessa confusão de vozes, tropel de cavalos e jumentos, verduras, conversa fiada, de pé-de-orelha, pechincha e literatura de cordel, que o demônio em forma de gente, de alcunha Chicó Capeta, apareceu no Entroncamento, acompanhado de cinco capangas, desordeiros, cangaceiros do mal, em bando, feito matilha de cachorros doidos, armados até os dentes. Com eles havia mais uma mulher, como se fosse bicho do mato, olhar conformado de rolinha-fogo-apagou, indo como se não quisesse, por obrigação de prisioneira.
Eu era menino, curumim-guia do Ceguinho do Berimbau, pretão bondoso que me dava comida para eu não morrer de fome, que família eu já não tinha, justamente morta pelo pistoleiro sem coração Chicó Capeta, terror da região. Eu era menino e vi tudo, com meus próprios olhos e, por isso posso contar como a mais pura verdade verdadeira, as cenas daquele duelo sangrento que depois virou cantiga heróica de cabo a rabo do Estado do Maranhão.
Acontece, para não perder o fio da meada, que preciso recuar um pouco antes da chegada de Chicó Capeta ao Entroncamento, cheio de anéis, punhais e poeira de morte.
Um tiquinho antes, quando tudo estava em paz, eu, menino-guia do Ceguinho do Berimbau, sentado debaixo de um pé de jatobá, com o mestre cantando seus repentes, vi um vulto que vinha do Caminho Grande, de chão batido, principal entrada do Entroncamento. Cavalo e cavaleiro brilhavam no solzão, céu azulzinho, sem andorinha nem carcará, como eu já disse, no meio da manhã de sábado daquele agosto.
Menino de imaginação esparramada, ficava mais impressionado, conforme a figura de homem e cavalo se aproximava. Cavalo bonito, trotador, preto como a asa do chico-preto. E o cavaleiro, chapéu de couro, cravejado, blusão de couro curtido, arreio prateado, barba crescendo, um vinco entre as duas sobrancelhas, sinal de cabra-macho, destemido e valente como os heróis dos repentes do meu mestre Ceguinho do Berimbau. Mais valente parecia pelos apetrechos de morte que carregava no galope. Vi e reconheci, o que eu queria quando crescesse: um rifle de cada lado da sela, cartucheira cheinha de bala, cruzando o peito, dois punhais na cintura e mais dois nas botas de esporas, tilintando macheza.
As pessoas que já se achegavam à feira do Entroncamento, olhavam o guerreiro, e tiravam o olhar na dúvida de suas intenções, mesmo porque ele não encarava ninguém. Sombrio, galopando na direção do jatobá, onde eu e meu mestre, sentadinhos no banco do tronco da árvore, ali estávamos.
– Quem é, curumim?
– É forasteiro, mestre! Estranho de tudo, entupido de bala e punhal. Parece que tem o corpo fechado, e tá pronto pra ajuste de contas, como se viesse no rasto, farejando vingança.
Conversa baixinha que travei com mestre Ceguinho do Berimbau, que, na sua cegueira dos olhos, usava outras inteligências dos sentidos para sentir na intuição o que os comuns dos mortais não percebiam. E ele sentia cheiro de vingança no ar, misturado com os cochichos dos caboclos, donzelas e mães preocupadas com a presença desconhecida.
De ronda, como de costume, nas feiras de fim de mês no Entroncamento, o delegado Marcelino Cara-de-Onça, e mais dois soldados de farda cáqui, parecendo macacos-pregos, vindos da cidade de Brejo Brabo, duas léguas dali, ficaram de canto de olho espiando o estrangeiro. Mas, na dúvida, se era pistoleiro de má índole ou não, enviado de encomenda, faziam de conta que nada de anormal estava acontecendo.
O forasteiro apeou do cavalo, pertinho de mim e do mestre, amarrou o bicho suado e ofegante no tronco do jatobá, serventia de banco e amarrador. Sentou-se do meu lado, como se eu fosse uma formiga. Calado, mudo, ensimesmado. Puxou fumo do alforje, fez um cigarro de palha, e ali ficou. Me encolhi pra perto do mestre, e o mestre que via com as intuições, disfarçando o nervosismo do momento, tirou um repente, como quem espera a feira para ganhar uns trocados.
Ceguinho do Berimbau
Sou cego desde nascença
Sem rumo pelo sertão
Guiado pela ciência
Do amor e do coração
Ceguinho pede licença
Pra dispensar violão.
Eu toco é berimbau
Mas faço o meu repente
Enxergo o que ninguém vê
Nos olhos de minha mente
Sei quem nasce e vai morrer
Pressinto o que ninguém sente
Sei quem é sem me dizer.
Um menino me conduz
Mas Deus é quem me guia
Componho na escuridão
Cordel e filosofia
Canto o anseio da multidão
Sou menestrel da alegria
Nascido no Maranhão.
Foi nessa hora, como o fio que se cruza no nó, ou de caso esperado, pois quem com ferro fere, com ferro será ferido, e não há quem cuspa pra cima que não lhe caia na cara, quem a paca cara compra a paca cara paga; como eu ia dizendo, foi nessa hora, de repente, no final do repente do mestre Ceguinho do Berimbau, que o inferno começou na feira de troca-troca do Entroncamento, quando se encruzilharam o tal forasteiro sem nome e a chegada do bando de Chicó Capeta, espalhando terror e morte pra todo lado.
Perverso por natureza, ladrão e assassino por gosto, o bandoleiro Chicó, homenzarrão e bárbaro, de bigode e rosto avermelhados, iniciou o derramamento de sangue pelo delegado Cara-de-Onça e seus dois soldados. Matou os três antes que reagissem, cortou as cabeças e exibiu para as pessoas assustadas. Era de propósito, para aterrorizar e ninguém reagir de medo. Atiravam para tudo que era canto, roubavam e humilhavam por diversão. As moças mais formosas que não conseguiam escapar, eles rasgavam as roupas e se divertiam com a vergonha das donzelas. Um pai e uma mãe, que em desespero tentaram proteger as filhas, pedindo por amor de Deus, morreram ali de punhal e faca na garganta, covardemente.
A correria foi grande, e num piscar de olhos a feira esvaziou, gente desabando no mato, fugindo da morte, adentrando nos casebres, se protegendo de bala.
O forasteiro, que a tudo via, não pareceu surpreso com a aparição do Chicó Capeta. Me empurrou, eu e o mestre, num buraco, no tronco do jatobá, no fogo-cruzado, bala zunindo e cruzando o espaço. O estranho puxou, como um gato, os dois rifles do corcel negro, soltou o cavalo e se entrincheirou no tronco da árvore, esperando a hora e a vez do juízo final.
– Pega aquele cabra safado! – gritou Chicó Capeta, só agora vendo o estrangeiro.
Sopa de Osso, magro só de ruim, cão fiel de Chicó, esporeou o cavalo e partiu no rumo do jatobá. Quando fez a curva em torno da árvore, o forasteiro nem usou o rifle. Meteu o punhal de um lado a outro da barriga do bandido que as tripas pularam fora, feito ninho de cobras avermelhadas.
– Esse cabra é da peste, negrada! Bala nele! – espumou de raiva Chicó Capeta, incitando os três bandoleiros que restavam.
Os winchester, garruchas, parabelo, trinta e oito e até fuzil de exército cuspiram fogo pras bandas do jatobá, arrancando lasca da velha, gorda e dura árvore, trincheira do forasteiro. Na tática de confundir o entrincheirado, Chicó Capeta orientou suas cobras caninanas:
– Vamos fechar o cerco, Tição Pantera! Vamos nos espalhar em roda, Maracajá Capoeira. E tu, Engole Espada, capricha na cobertura!
O tiroteio foi grande, mais pavoroso que chiado de cascavel, a morte e a fúria rasgando a manhã quente de agosto, na encruzilhada do medo.
– Curumim, nós vamos morrer! Quem é esse maluco que enfrenta o demônio do Chicó, menino? – interrogou o ceguinho, no buraco do jatobá, bala raspando a sua cabeça. Eu, o curumim, protegido ali pelo corpanzil do Ceguinho, respondi:
– É um anjo da morte, mestre! Já matou um, tirando as tripas de fora.
Nisso falando, Maracajá Capoeira foi surgindo do nada, pulando do cavalo, na justificativa do nome, que tinha a ligeireza do gato-maracajá e o treinamento de capoeira. Pulava feito macaco, mas foi atingido no ar com o vôo do punhal que o estranho lançou feito cobra voadora, encravando no peito do bicho. Mas, morto ainda não estava, como se tivesse sete vidas, e ainda avançava como felino ferido. O estrangeiro deu-lhe um tiro de misericórdia no meio da testa, e ele caiu estatelado.
Sabendo do acontecido, Chicó ordenou a Tição Pantera, em urro de raiva e ódio assassino:
– Vai, Tição! Tu tem o corpo fechado na macumba do João da Coroação. Confia nos teus guias, e sangra o homem.
Aproveitando o desamparo momentâneo do forasteiro na luta com Maracajá, e depois crivando de bala o Engole Espada, o negão Tição saltou do cavalo em velocidade, partiu para o corpo-a-corpo feito corisco, confiante no fechamento da própria carne. E só não matou o estrangeiro, porque um estampido, do nada, ou do chão, varou as costas do bandoleiro, derrubando o negão com o impacto mortífero. Era Lurdinha, aquela dos olhos tristes de rolinha-fogo-apagou, com um trinta e oito, entrando na briga, tomando partido, aproveitando para lavar a honra dos estupros desses anos em cativeiro.
Mas já Chicó chegava pela retaguarda e disparou um tiro de pistola 44 no estrangeiro, que só teve tempo de desviar o coração, mas foi atingido no braço direito, trincando o osso e queimando a carne, jorrando sangue na dor de ferida braba.
– Cabra-da-peste, filho-de-uma-égua, de porca-parida, agora te peguei e tu vai ver quem é Chicó, Rei dos Homens, matador que não tem medo nem de Deus! – assim disse o Capeta e partiu espumando, gigante demoníaco, para cima do estrangeiro, punhal na mão, brilhando ao sol, a poeira no rastro das botas. Chicó pensou que o tiro tinha sido mortal, mas já encontrou o estrangeiro de pé, também armado de punhal na mão esquerda, pronto para o duelo de vida ou morte, hora do acerto final, homem a homem, briga mais feia de selvagem valente no fio do metal cortante e fatal. No intuito da vantagem, Chicó partiu para cima do forasteiro, visando o peito esquerdo. O estrangeiro, com as pernas ágeis, fugiu da agressão, deitou no chão, deu a rasteira e acertou o golpe de punhal no tendão-de-aquiles do bandoleiro, que urrou, sentiu a falta de apoio, mas se firmou numa só perna. Sangue de um lado e sangue do outro, no equilíbrio da luta encarniçada, o gigante Capeta, herege, ferido, praguejava para intimidar o adversário:
– Eu comecei matando pai e filho, dos valentes Garcia, do Canto do Arrodeio. E trouxe a noiva do filho, de troféu, pra minha puta de companhia. De lá pra cá, já matei mais cem, de alta e baixa patente. Não é o cento e um que vou deixar de sangrar e capar.
E se danava a falar brabeza, contando vantagens de crimes e maldades. Estudando o estranho sem nome, que ele chamou de filho de uma porca-parida, cantou, no suado do enfrentamento, um repente de elogio do Ceguinho do Berimbau, que o bandido obrigou o mestre a compor e espalhar pelas redondezas.
Chicó Capeta só vive
Pra fazer assombração
Onde ele e o cavalo passa
Não fica um só valentão
Ele rouba, estupra e mata
Capeta não pede não
Tem alma de cascavel
Tem pacto com o cão
Come com sal e pimenta
A cabeça e o coração
De quem com ele se enfrenta
Em qualquer situação
Em festa de casamento
Matou na mesminha hora
Pai e filho Garcia
Depois pra mais de cem
Filho de puta vadia
Te mato agora também
Achando o forasteiro mais fraco que ele, de tanto derramar sangue, que era por isso também que Chicó ganhava tempo se gabando, calculou a hora do bote derradeiro e fulminante.
– Agora tu vai me dizer teu nome, cabra dos infernos, e chorando, porque vou te matar devagarinho.
Então Chicó, numa perna só, partiu para cima do estrangeiro, que jogou o punhal no bandido, que se defendeu num jogo de corpo. Mas era isso que o estrangeiro queria. Aproveitando o desequilíbrio do Capeta e, numa ligeireza já treinada em anos de preparação, puxou de detrás do gibão de couro o outro punhal, arremessando-o certeiro, bem na garganta do gigante, que ficou espumando sangue, entalado com a arma. Chicó Capeta deu uns passos para trás, cambaleando, e desabou numa touceira de tucum, árvore cheia de espinhos, casa de um formigueiro de formiga-saúva, da roxa e fedorenta.
O estrangeiro se aproximou, cravou o olhar no Capeta ensanguentado, olhando o sofrimento do outro, que ainda balbuciou, num esforço desgraçado de dor, borbulhando sangue, a boca cheia já de formiga:
– Qual é… teu… nome… cabra…?
O estrangeiro esperou um pouco, lavando uma dor silenciosa na agonia do moribundo, uma dor há anos grudada na alma, agora lavada na vingança. E disse, diante de mim, do meu mestre Ceguinho do Berimbau e dos curiosos que se achegavam:
– Meu nome é Garcia.
Depois subiu no corcel negro com Lurdinha na garupa. Saiu trotando na manhã ensolarada, céu azul, urubus chegando no cheiro de sangue. E virou um vulto, até desaparecer no clarão de sábado de um agosto, na feira do Entroncamento, que hoje se chama Entroncamento das Cruzes, onze cruzes que meu mestre, Ceguinho do Berimbau, enquanto viveu, cantou nos seus repentes, o que viu sem ver, para virar tradição e lenda, aquele duelo de vingança do Anjo da Morte com os capetas do inferno.
Em um corcel negro ao sol
Na feira do Entroncamento
Apareceu um forasteiro
Sem nome sem documento
Cara de mau e justiceiro
Naquele dia sangrento
Dia do juízo final
Duelo de rifle e faca
Entre o Capeta Chicó
E o forasteiro sem fala
Dos dois viveu um só
O demo morto na bala
Meu nome é Garcia
Disse o estranho afinal
E logo o cão se lembrou
Da gente que ele fez mal
Que outro Garcia vingou
Na bala, faca e punhal.
O DIAMBA
Diamba era uma figura popular em nossa cidade. Conhecia todo mundo, todos o conheciam. Até os meninos conversavam com ele, sem medo, pela sua índole pacífica, inofensiva. Achava graça dos gracejos que faziam com ele, da sua roupa suja, seus cabelos desgrenhados, imundos, seu sorriso desdentado. Mas Diamba sorria para a cidade, a cidade sorria para Diamba. Ele morava nas ruas, dormia debaixo de alguma platibanda do comércio, debaixo da ponte do rio Itapecuru, que cortava a cidade ao meio, ou mesmo ao relento. A nossa cidade era mais do Diamba do que nossa, porque ele a explorava e a vivia por inteiro, conhecia a todos pelo nome, todos o conheciam como Diamba, sem que ele se incomodasse com isso, e, para dizer a verdade, era amigo até dos cachorros vira-latas que passavam a noite com ele, fizesse sol ou chuva.
Mas, apesar dessas qualidades bonachonas, ordeiras e incautas, que faziam do Diamba o nosso louco folclórico e tolerado na convivência cotidiana com o povo, ele vira-e-mexe estava na cadeia, coisa de que até gostava, dizia, por ser mais confortável do que viver ao deus-dará das ruas, às vezes tempestuosas nas madrugadas frias e de chuvas.
Os motivos dos xilindrós de Diamba eram conhecidos da população e reincidentes, sempre os mesmos. Ele se chamava Diamba de tanto fumar maconha, o que a polícia e as pessoas até toleravam se ele curtia sua “mariajuana” escondido pela noite adentro. Mas tinha dia em que o Diamba, mais inspirado, quando arranjava uns “cigarros” das carradas apreendidas pela polícia, que a região era pródiga nas plantações clandestinas, ia para rua, publicamente, dando suas baforadas, na frente das crianças, das mulheres, e pior, do padre e das beatas. Não satisfeito, no embalo do barato em excesso, descambava para a beira do rio para olhar as mulheres lavando roupa, e se danava a tocar punheta, nuzinho, sem se esconder. Davam queixa, e lá Diamba era preso com o pau na mão.
A cidade ria, os moralistas praguejavam, as mulheres cochichavam pelos cantos sobre o tamanho da diamba do Diamba, que era bem dotada e assanhava o imaginário feminino.
Mas ele não passava muito tempo na cadeia. Era amigo dos graúdos, tratava-os como camaradas, e sem a maconha no cérebro era uma grande figura humana, um meninão abobalhado, dócil, cativante de tal forma que os figurões, alguns até beneficiados pelas maconhas do Diamba, também interferiam a seu favor, depois que a poeira do escândalo de tara assentava no esquecimento de dois dias, uma semana no máximo.
Era sábado, dia festivo, a cidade envolta em sorrisos matinais na Estação de Trem, na praça da Matriz. O trem vinha de Teresina, arrastando passageiros nas brenhas por onde passava, “queimando lenha, soltando brasa; tanto queima como atrasa.” Na estação, parecia festa de padroeira: as meninas com vestidos de domingo, os rapazes asseados, sonhos de amor nos olhares que se cruzavam. Era um ponto de encontros, de chegadas e despedidas; os políticos aproveitavam, inclusive o prefeito, para sorrir e cumprimentar o povo. Vendiam-se mingau, manuê, cuscuz de milho e arroz, bolo de trigo, de macaxeira, pipoca, picolé, sorvete, algodão-doce e pirulito. Até a Maria Piauí, umbandista famosa, o padre Ribamar e o Dr. Anselmo por lá já se encontravam. A estação ficava colorida, ecumênica, tornava-se um parque de diversão, tudo para esperar o trem das dez, a Maria-Fumaça, que transportava gente, sonhos, riquezas, alegrias e tristezas em seus trilhos, qual duas cobras-sem-cabeças paralelas, embrenhando-se na mata de um lado ao outro, nos opostos dos desconhecidos.
Neste sábado, sentia-se falta do Diamba, figurinha carimbada, indefectível, na chegada do trem. Talvez tivesse morrido à noite, de febre, coqueluche, ou quem sabe: de tanto fumar maconha debaixo da ponte, na beira do rio. Diamba fazia parte da cidade, era um tipo, formara conceito no imaginário coletivo; sem ele, a cidade não seria a mesma, perderia uma referência humana que simbolizava a libertinagem permitida, a vagabundagem sem compromisso com o tempo ou documento, a vida levada ao sabor das horas sem encontros marcados, entre um cigarro e outro da melhor maconha do Brasil.
Mas foi surgir o apito do trem, um gemido de cansaço repetitivo surgindo na curva, ao longe, por entre as palmeiras, como se viesse morrendo de sede e fome, para o Diamba aparecer, saindo do mato, a duzentos metros da estação. À medida que o trem resfolegava feito gigante centopéia, soltando fumaça e rangidos esbaforidos, Diamba se encaminhava para o meio dos trilhos, onde, de pé e de braços abertos, se postou feito uma árvore. Não tinha como a multidão, a cidade toda, deixar de olhar o Diamba e o trem. Tão logo o povo percebeu o intenção do tresloucado, que era de se matar mesmo, esmagado pelo trem, a comoção foi geral. “Sai daí, Diamba!” “Pelo amor de Deus, Nossa Senhora dos Desvalidos protegei o Diamba”. “Diamba, nós te amamos, sai da linha do trem.” Mulheres desmaiavam, as crianças apavoradas se agarravam aos pais, o padre fazia o sinal-da-cruz, os apelos se sucediam em súplicas e pânico, mas o Diamba, impassível, permanecia entre um trilho e outro, esperando a morte, que trem não tem freio como carro, só para na estação, o que tem pela frente ele tritura, estraçalha.
Quando percebeu que a certeza da tragédia tinha contagiado a todos, a histeria do pavor tomando conta das almas aflitas diante da iminente morte dele, os olhos vidrados na sua figura quase defunta, ele, Diamba, começou a discursar, nisso o trem já a cem metros de sua carcaça.
Disse que estava cansado da vida, não queria mais viver, que era um pobre-coitado, apanhava da polícia, que todos cuspiam na cara dele, riam dele, que até os cachorros o desprezavam; que não podia entrar na igreja, que não tinha um só amigo, e o pior de tudo: nem sua maconha, podia mais fumar sossegado. A vida acabara para ele. Adeus! Adeus! Despedia-se Diamba da vida, o trem a três metros dele. Foi um horror, um chororô, uma gritaria geral, a morte do Diamba na frente de toda a cidade, o trem devorando o Diamba, soltando lenha, soltando brasa, soltando fumaça.
Depois que o trem passou por cima do Diamba, entre desmaios e lágrimas dos espectadores, todos correram ao encontro do seu cadáver, ou do que restara dele. O padre com a extrema-unção, o doutor com sua maleta, a Maria Piauí com suas mandingas, o prefeito dando ordens, o povo sem acreditar no que tinha visto, em estado de choque.
Quando se aproximaram do local fatídico, nem uma gota de sangue, nenhum dedinho do morto, tripa, cabelo, nada. No meio do suspense e do mistério, dezenas de rostos abalados com a situação, Diamba sai de dentro de um buraco, entre um trilho e outro, buraco que ele fizera durante a madrugada, todo sujo de fumaça, óleo queimado, pedaços de carvão em brasa pelo corpo, ele se espanando das sujeiras deixadas pela Maria-Fumaça. Encarou a todos com seu olhar de maluco-beleza, todos o olhando entre estupefatos, comovidos e indignados, e disse:
– Tão pensando o quê, seus bestas!? Eu sou é doido, não sou maluco, não!
Diamba foi direto para a cadeia, por ordem expressa do prefeito. Mas justamente por isso se tornou mais querido na cidade. E sempre aparecia uma diambinha para ele fumar, escondido, olhando as mulheres nuas que se banhavam no rio Itapecuru.