VIVER SÃO LUÍS (Alex Brasil)

VIVER SÃO LUÍS

(Alex Brasil)


“Não sou nada,/ nunca serei nada./Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

Inicio meu discurso citando esses versos de Fernando Pessoa, tão simples e tão profundos, para confessar que eu jamais conquistaria o pouco que conquistei, especialmente amigos, se Deus não me tivesse premiado com a alma de poeta, sonhador de horizontes, além das fronteiras a que o destino me impôs, gerando-me à beira de uma estrada, às margens de um riacho, sob palhas de babaçu, num povoado extremamente humilde, nos confins de um Maranhão extremamente pobre, onde só o sonho, o cismar de um menino, o libertaria do analfabetismo e da mortalidade infantil que tantas infâncias enterram diante de minha infância sem perspectiva de futuro, nas veredas da fome e da miséria.

Mas por  ter alma de poeta, foi ali, na minha vila dos confins, chamada Saco, nos babaçuais esquecidos de Codó, que sonhei São Luís pela primeira vez, meu sonho a navegar sobre as folhas secas, deslizando mansamente na correnteza do meu igarapé, embrenhando-se no verde da mata escura e misteriosa, levando meu coração para o mar de São Luís, com os cabeça-de-cuias e mães d’águas, viajores das distâncias que os meus olhos sonhavam.

Foi ali, na poeira que os solitários caminhões deixavam nos olhos daquele menino, que sonhei São Luís, seguindo a estrada de barro e piçarra que se perdia na curva, como se fosse a estrada de minha vida levando-me para viver em São Luís, para viver por São Luís, para morrer em São Luís.

E quando aqui cheguei, lembro-me com o fogo vivo da lembrança, senti-me perdido nas ruas estreitas, de ladeiras e mirantes seculares; senti-me pequeno diante da baía  de São Marcos, vista do lado de fora do Palácio dos Leões, também imponente, a esmagar meu espírito provinciano de pré-adolescente, debatendo-se com a tímida esperança de um dia conquistar São Luís.

Entre a solidão de um menino pobre de tudo, e o deslumbramento de um poeta sem versos publicados ou escritos, agarrei-me na esperança de que o futuro me desafiava a descobrir espaços, e gentes, e amores e vitórias nesta cidade.

Sem dinheiro, sem parentes importantes e sem amigos, o que me restava naquele instante de solidão absoluta senão apoiar-me naqueles versos de Gonçalves Dias, que lera em frente ao Ginásio Costa Rodrigues, e que dizia: “A vida é combate/que os fracos abate,/ que os fortes,/ os bravos/ só pode exaltar?”

Aquele foi um momento iluminado para mim, pois naquele exato instante tive plena consciência de que nada seria, de que a nada chegaria, se não fosse através dos livros, aqueles livros, aos montes, que me deixaram extasiados na Biblioteca Benedito Leite, na Praça Deodoro, livros que eu poderia ler sem dinheiro, sem amigos, sem parentes importantes.

E cada livro que eu lia, não vorazmente, mas aos poucos, porque nem sempre tinha a passagem de ônibus, era uma porta que se abria diante dos meus olhos a descortinar novos caminhos de minha vida em São Luís, que passei a descobrir, como quem descobre um tesouro.

Por causa de São Luís, descobri o poeta que havia em mim, descobri os poetas de São Luís: Bandeira Tribuzi, Nauro Machado, Ferreira Gullar, Arlete da Cruz Nogueira Machado, Ivan Sarney, os irmãos poetas de minha geração e das gerações que fizeram de São Luís terra de poetas.

Por causa de São Luís, descobri que ela, São Luís, seria um amor importante na minha vida, como Esmeralda, minha esposa, seria o amor de minha vida. E que não precisaria viver no Rio de Janeiro, ou São Paulo, Paris ou Nova York para ser feliz. Pois minha felicidade estava aqui, entre praias, ventanias, história e poesia.

Descobri que para viver, bastava viver São Luís, e “Que felicidade descobrir/que transpiro São Luís./Que meus olhos/vislumbram em círculos,/que tudo é curvo ao meu redor,/mas infinitamente curvo/ como as ondas do mar/ como os retornos do Calhau/ do São Cristovão, do Radional,/ do Olho D’água, da Cohama,/ da Camboa…/ Como todos os retornos que sempre/ me reconduzem à Praça João Lisboa./Que felicidade descobrir/ que São Luís é a capital/ do meu império universal,/a plataforma donde/ todos os meus sonhos decolam/e todas as minhas esperanças florescem;/ e todas as minhas angústias se esgotam; para onde meu passado reflui,/em vagas agitadas/arrastando palmeiras do continente/ cabeças de cuias dos riachos reluzentes,/mães-d’água de minha infância,/os primeiros sorvetes nas praças de Codó,/as misérias do meu interior./Que felicidade descobrir/ que este poema não tem fim,/ porque fala de São Luís/ e São Luís é infinita dentro de mim,/ desde as primeiras namoradas/ nos encontros da Deodoro,/ no parapeito da Praça Gonçalves Dias,/na meia-lua da Pedra da Memória,/mirando o mar pro lado do horizonte,/conjecturando o palácio,/além de suas muralhas,/eu do lado de cá/pobre plebeu andante./Que felicidade imensa/descobrir que São Luís é minha casa,/ que suas ruas, árvores, praças,/casarões, igrejas e barcos/ circulam em minhas veias/se acomodam em meu cérebro/ de tal forma, com tanta simplicidade/ que não raciocino para andar,/ para dirigir em alta velocidade/porque os conheço como a meus
braços,/minhas pernas, meus defeitos./E até suas mudanças: um buraco que surge,/uma ponte que cai,/um igarapé que morre,/uma flor que abre,/uma fábrica estranha,/chegando sem pedir licença,/ os loteamentos que cortam sua cabeleira verde,/ tudo isto eu sinto/com a mesma intensidade/com que sinto os cravos surgindo no meu rosto,/meus cabelos caindo,/minhas primeiras rugas surgindo,/meu corpo todo se transformando/ e, no entanto, sendo o mesmo corpo,/ tão conhecido meu,/tão perto de mim,/tão vital para mim,/ sob o sol que me queima,/ sob as estrelas que me velam/sem as quais/não mais verei os dias/ que me esperam./Ah, que felicidade descobrir São Luís,/ digerir suas auroras e horizontes,/ ouvir o matraquear do bumba-meu-boi,/sonhar com as moças bonitas nos mirantes,/ver a Rua Oswaldo Cruz/ com seus telhados na madrugada,/ seus azulejos resistindo ao mercantilismo,/refletindo a lua de clarão prateado/como há 300 anos passados,/nos mistérios da Praia Grande,/ ou enfeitando amores na 28,/ onde todos nossos poetas/ cantaram versos sussurrados/ às musas pagãs,/versos jamais publicados,/ porque não havia lápis nem papel/ na hora do gozo, na hora do afã…/Que felicidade Viver São Luís,/ meus pés em seus paralelepípedos,/subindo as escadas de madeiras, escalando e descendo seus degraus e ladeiras:/ a Montanha Russa,/a Rampa do Palácio/a Rua do Egito/rumo ao Santa Teresa/(lembrança do vento a levantar as saias das ninfetas);/mergulhando na Rua dos Afogados, parando na Fonte do Ribeirão, todo suado:/ recortando a Rua do Sol,/ a Rua da Paz,/esperando o ônibus da Cetracol./Que felicidade Viver São Luís/e saber que viver São Luís/ não é apenas/ fazer xodó em suas esquinas/comer peixe frito com farinha de puba;/encher a barriga de camarão, siri, caranguejo,/enquanto se excita olhando as meninas/ nas praias da Ponta d’areia,/do Araçagi,/do Calhau/e do Olho d’Água./Que felicidade saber/ que Viver São Luís/é mais que ler Poema Sujo, de Ferreira Gullar,/O Mulato, de Aloísio de Azevedo;/ Louvação a São Luís/de Bandeira Tribuzi;/é mais que ler Josué Montello/toda nossa azulejada literatura…/ é saber que somos parte da cidade/que somos um milhão de pessoas ilhadas/ a habitar crepúsculos e brisas,/céu, sal, madrugadas,/onde tudo acontece/, desde os crimes da Vila Embratel,/das grilagens do coronel,/da mulher enterrando o filho no quintal,/até o ar condicionado no escritório oficial./Que felicidade descobrir a tempo/que Viver São Luís/é mais que acordar na cidade – é agir na cidade,/ é mover as mãos na cidade,/como se move as mãos em nossa casa,/colocando tudo em seu devido lugar,/deixando a Praia Grande onde está,/cada casarão em si mesmo,/cada azulejo com seu próprio brilho;/e não querer nada novo,/que novo é outra coisa/e outra coisa não somos nós./Que felicidade viver São Luís,/sabendo que ela está ficando quente,/que  não é só esperar Carajás,/que o mais importante é nossa gente,/que nossa história ficará;/que o futuro deve vir sem veneno,/pois há espaço para o novo/e o velho conviver,/que,por sermos ilha, não somos pequenos,/pois pensamos grande no querer/e assim queremos -/ a cidade como eu agora feliz,/mais que cantante,/guerreiro timbira gritando:/que felicidade viver São Luís!

Depois, aprendi a amar São Luís, me apaixonei por São Luís, entreguei-me aos seus encantos, como quem se entrega à mulher amada, entregando-lhe a vida e o coração, com os sentimentos feitos raízes que só a morte arranca na inevitável separação; e que nem a morte arranca, pois permanecerei nos versos em que a cantei com as tintas da imortalidade de quem ama para sempre.

Aprendi a amar São Luís como José Chagas a ama e nela se faz eterno; como Tribuzi a amou e nela se fez memória; como Gullar a ama e nela se faz saudade; como Nauro Machado a ama numa relação de amor e existencialismo que transcende o simples lirismo das emoções fugazes.

Aprendi a amar São Luís como todos os seus poetas a amam, cantando não só a poesia dos seus horizontes, de sua luz, de seu mar e do seu céu que nos protege; mas também sentindo os seus gemidos, sofrendo pelo desamor dos não poetas, daqueles que a maltratam, devastando o seu verde, asfixiando os seus rios, poluindo suas praias, descuidando dos seus filhos, esquecendo os deserdados às margens de São Luís, sem direito aos sonhos que um dia eu tive de conquistar São Luís, dignificando-a e sendo digno de São Luís.

Por isso, este título de cidadão de São Luís, com o qual a nossa Câmara Municipal me honra e me comove, torna-me mais responsável por São Luís; obriga-me a seguir o exemplo dos meus amigos vereadores aqui presentes, que todos os dias declaram amor a São Luís, lutando pela sua qualidade de vida, cuidando da cidade como quem cuida do próprio lar, da sua família, não esquecendo um só instante daquilo que o poeta mais apaixonado por São Luís, o meu fraterno amigo Ivan Sarney, nos ensina todas as semanas em suas belas e poéticas crônicas, quando nos diz que é preciso amar a cidade, é preciso amar São Luís.

Este título me lembrará a cada instante que devo retribuir com a gratidão tudo que São Luís me permitiu a ser a partir das oportunidades que nela encontrei.

Mais do que doar a São Luís versos e galanteios, devo me doar à São Luís com o meu trabalho, suor e sangue para que São Luís e sua gente, a nossa gente, sejam tratadas com a dignidade e a atenção que merecem.

Devo me doar para que São Luís continue inspirando jovens que, como eu um dia, nela sonharam e realizaram o maior de todos os sonhos – o de ser feliz em São Luís, sem nada mais ter a pedir, mas a agradecer, como agora agradeço: obrigado São Luís, por me fazer feliz, por seres o palco dos melhores momentos de minha vida.

Muito Obrigado.