RAZÕES DO CORAÇÃO

UNIVERSO

O universo é um conflito infinito
que a razão disfarça,
criando um nome chamado harmonia.
Onde haverá a paz sem violência?
Onde haverá maturidade sem inocência?
Onde haverá edificação sem destruição?
Onde haverá multidão sem solidão?
Onde haverá o ódio sem o amor?
Onde haverá a felicidade sem a dor?
Onde haverá coisas que descem sem coisas que sobem?
Onde haverá uma flor sem o espinho que ferroa?
Onde haverá, enfim, um Deus que só perdoa?

 


REALIDADE

Hoje estive observando detidamente o movimento das coisas vivas
E o próprio movimento de minhas mãos, lábios e olhos.
Ainda assim não consegui entender a realidade bipartida;
Camuflada sob a loucura, mimetizada em sonhos.

 


COMENTÁRIO
Razões do Coração

 

“é fogo que arde…”
Alex Brasil vem construindo, com pertinácia e humildade, uma voz poética dessemelhante à maranhense contemporâneo. Daí não ser exagero dizer-se que ele, neste livro, se afasta dos companheiros de geração pela tendência inata do seu estro romântico, onde a mulher surge como presença unitiva do desejo revolucionário e do sexo voluptuoso, e pelo descompromisso estrutural de um verbo feito muitas vezes com rimas lembrando a aparente facilidade da música popular.
Poeta avesso às tortuosidades de metafisicas, sua matéria de vida e verbo é composta de uma argamassa construída pelo trabalho orgânico do povo. Daí, também, a revolta a fazê-Io eco das vozes que se sabem compartícipes serventuárias da razão e do coração, intuindo, Com ele, que
“de antíteses
se alimenta
o meu coração.”
E ao dizer, noutro poema, que
“quanto mais te acho,
mais me faço labirinto.”

 


COMENTÁRIO (JOSÉ LOUZEIRO)

O SEXTO SENTIDO DO POETA

 

Para Jules Lemaitre, em Les Contemporains, a crítica literária é o exercício de julgar-se “bom aquilo de que se gosta”. Significa dizer: o gosto pessoal, a visão pessoal, acima da verdade histórica e até científica. Seria a exaltação da individualidade e, obviamente, o predomínio de conceitos meramente impressionistas; o não agredir, nem transgredir, impondo-se como suportes da beleza, no sacrário da devoção burguesa e, por extensão, da obediência ao stablishment.

Em termos jurídicos, seria o retomo aos princípios de Cesare Lombroso, com a “boniteza” servindo de elemento constitutivo do bem, enquanto a fealdade, no extremo oposto, formaria o pórtico negro da impostura e do mal.

Mas, ainda que deixemos Lemaitre de lado, não se pode ignorar que, tanto na crítica de fundamento sociológico, quanto na outra, praticada pelos cultores da hermenêutica de base ontológica, o poeta Alex Brasil teria o mesmo destino que vem tendo Lautréamont que, para Albert Camus, por exemplo, não passa de exibicionista maluco, enquanto que para outros – e a esses junta-se Léon Bloy – Os Cantos de Maldoror são “de beleza pânica, surpreendente” e, por isso não se enquadram nos nossos limitados padrões estéticos, subordinados aos paradigmas da moral e da ética.

Ma se Lautréamont era poeta louco capaz de desafiar os estudiosos ocidentais, tinha a lucidez de afirmar: ” A poesia deve ter por objetivo a verdade prática”. E é justamente essa norma que Alex Brasil tomou como premissa. Navega pelo poema até a exaustão impulsionado não por romântica inspiração que induziria ao belo, mas pela revolta que se confunde com a loucura, de ver o erro e a injustiça naquilo que o sistema contabiliza como justo e certo.

A poesia emblemática do livro intitula-se “Poeta é povo” e, à primeira vista, parece mero versejar de sabor político, relembrando os tempos da utopia marxista. Em leitura mais atenta, a névoa demagógica se esgarça, cedendo lugar à poética de raízes universais. E com elas ecoa o grito de protesto, sem as clássicas reivindicações do e do. Trata-se de manifestação clara e brutal, muito próxima à postura de Lautréamont que, em Os Cantos de Maldorol; atira-se contra o sagrado que o fez poeta consciente de suas dores, mas ignorante quanto ao mágico processo da cura.

A revolta de Alex Brasil não é a coisa que se possa avaliar nem no bojo da “verdade prática”, proposta por Lautréamont. Seu de contestação, misto de ódio e amargura, tem as cores da transgressão absoluta e, curiosamente, não induz à inação do pessimismo. Sugere, isto sim, o revolver do espírito, da razão, da inteligência orgânica; é telúrico e é sideral.

O poeta Alex tem consciência dos pés fincados no lodaçal do planeta Terra, mas a flor de lótus, da poética que pratica, ilumina de cores vivas as profundezas da estratosfera, com suas janelas de perplexidades, aberta sobre os buracos negros do infindável.

Por isso, ele adverte: “… Se a cidade concreta/ dorme nessa hipocrisia/ é o poeta que a desperta/ com o punhal da poesia”. E, mais adiante, fechando o arco de obsessiva contestação: “O poeta é raça/não é só emoção / ele luta na praça /nas ruas sangrao coração.”

No sonho do poeta os “homens brigam por Deus”, e com Deus, pois o coração, “ora anjo / ora bandido”, nos leva a entender que “somos culpados/ e somos inocentes”. Além disso, ainda que tenhamos a postura de cordeiros, também agimos como lobos, a “ranger os dentes”. Entre os instantes de revolta que marcam o Pátria Amarga, Brasil, nenhum suplanta este desabafo: “Quando vi Cristo ser crucificado / durante dois mil anos / deixei de ser apóstolo da paz…”

O resenhador de livros, habituado à “literatura de orelhas”, corre o risco de quebrar a cara, se apontar esta Obra como “cartilha extremista”, a defender princípios de força ou regimes de exceção.
Seria uma visão estreita sobre este poeta que optou por um código de comunicação, sem rebuscados estilísticos e, muito menos, pretensões metafóricas.

A linguagem jornalística deixa entrever a ligação que existe do seu trabalho com a oralidade do cordel. Mas, vencendo-se a crosta do “prosaismo”, se assim podemos dizer, deparamo-nos com o pensador, exercitando a dialética da rebeldia.

É bom lembrar que, estranhamente em meio ao contagiante instante de catatonia em que vivemos, os acontecimentos políticos mundiais indicam na direção do “social plural”. O velho Estado nacionalista, de perfil ainda feudal, acabou. Inicia-se a caminhada rumo à globalização e, mais uma vez, não estamos preparados para a prova, que terá caráter eliminatório.

Diz o historiador Paul Kennedy que o Estado, hoje, por ser grande demais, já não consegue impor-se a certos desafios do futuro. De outra parte, é infinitamente pequeno e impotente, diante dos problemas que fogem aos registros tradicionais da moral e da ética.

Curiosamente as contradições de quem os fala , Kennedy, no seu importante Ascensão e Queda das Grandes Potências, estão contidas nas inquietações de Alex Brasil. Esse fato o coloca entre os primeiros a sintonizar-se com os estatutos da “aldeia global”, a ser oficialmente inaugurada no próximo século, para vigorar por todo o terceiro milênio.

 


COMENTÁRIO (NAURO MACHADO)

Alex Brasil, ao contrário de um Mário de Sá-Carneiro, que se sentia com saudades dele próprio, numa alienação a encher-se paradoxalmente pela exclusão do mundo em si, é argamassado, no seu labirinto, pela inclusão de todos os outros, no seu mundo particular.

Prova disso é este livro, escrito com paixão e sinceridade, numa linguagem clara e comum, sem malabarismos ou pretensões renovadoras, possibilitando, dessa maneira, atingir a todos: os inocentes e os culpados, os amados e os mal-amados.

As Razões do Coração “é fogo que arde”, é a mensagem verbal de quem, a chamar-se Brasil, e por estar umbilicalmente preso àquilo que Drummond chamou de “tempo presente”, quer e pretende fazer-se uma radiografia poético-humana das tragédias e das esperanças que emblematizam o dia-a-dia do povo brasileiro.

Alex Brasil se desdobra, mais uma vez, num continuum lírico realizado entre a matéria presente, na anatematização dos seus valores espúrios, e a aceitação conteudística sentimentalizada, a constituir-se na ferramenta verbal da sua mensagem angustiante.