AMORES PERDIDOS

O ESCRITOR

Calça jeans envelhecida e botas surradas, talvez marrons, já sem cor, as pernas andavam desorientadas, entre milhares de pernas. O mundo para Bruno, naquele instante, era assim: visto de baixo, como o vêem os cachorros numa rua movimentada: apenas poeira, insensibilidade, o obscuro cheirando a barro e esgoto. Ele já tinha parado em duas praças do centro da metrópole em duas bancas de revistas (os rostos sorridentes, os títulos elogiosos em destaque nas primeiras páginas só o angustiavam mais), subira e descera duas ruas transversais, movimentadíssimas, fazendo o percurso três vezes, como autômato, prisioneiro da inércia, do vazio, de rumo incerto a seguir.

Milhares de pernas iam e viam, e no entanto, só as deles eram as mesmas, repisando os próprios passos como boi no engenho. Já eram cinco horas da tarde e desde às onze da manhã ele caminhava, caminhava sem saber o que pensar, para onde ir, o que fazer. Vitrinas, buzinas, fumaça, tropeções, o burburinho da turba calam lodocentos em sua alma. Sentia náusea, nojo de si, da vida, dos homens. Um fracasso a sua existência e a própria vida. Seu espírito afundava em desânimo, como se aquele fosse o fim do sonho, da esperança, de todos os seus objetivos. Nem percebia os cabelos em desalinho, o visco poeirento e oleoso no rosto, na barba por fazer.

Pior: sequer sentia a fome no estômago.

Bruno, um metro e setenta, trinta anos, corpo esbelto, trajando ainda uma camisa vermelha, amarfanhada, de malhas grossas, não estava apenas só na multidão, estava perdido no meio da cidade grande e perdido, principalmente, dentro de si mesmo. As botas velhas, descoradas, o conduziam em zigue-zague, para lá e para cá, mas, invariavelmente, para lugar nenhum. As emoções se colidindo dentro dele, em ebulição, em contradição, pressionando, fustigando, explodindo, infernizando o seu cérebro descontrolado, desgovernado.

Debaixo do braço, como se pesasse uma tonelada, uma pasta abarrotada de papéis datilografados. Uma pasta simples, suada, medíocre como sua própria existência. Pesava, mas como autômato ele a conduzia, a suportava como a seu próprio corpo, parte dele, uma extensão de sua invalidade, insignificância, mediocridade mesmo. Alheio, anestesiado em sua dor, nem percebeu a faca entrando-lhe na barriga, não distinguiu um só traço do desconhecido de olhar lunático, desferindo-lhe um golpe absurdo. Misturado ao suor, o sangue fez uma mancha vermelha no vermelho desquarado da camisa de Bruno, enquanto seu corpo tombava no asfalto sobre a pasta entre os braços. Toda a confusão que se formou ao seu redor, Bruno sequer teve a mínima noção. Parecia dormir, descansava, enfim, na inconsciência, despreendia-se do Iodo, da lama, da dor, dormia graças àquela mão benfazeja, absurda, anestesiante. Dormia, enfim.

Quarenta e oito horas depois ele acordava no leito de um hospital. A primeira impressão era de dor no estômago, onde a faca o penetrara quase que mortalmente. Além disso, sentia o corpo mole, sem reflexos, a mente em branco, querendo entender a nova realidade à sua frente: médico, enfermeira, gazes, soro. . . e o mais incompreensível – fotógrafos, jornalistas e até uma câmara de TV. Bruno, simplesmente Bruno, era o que constava no seu prontuário. Todos ali estavam querendo saber mais sobre ele. O primeiro a falar-lhe foi o médico, pedindo justamente para que não fizesse esforço, não falasse ainda. Ao seu redor, as outras pessoas ficaram quietas, mas, visivelmente, curiosas. Só aos poucos, então é que Bruno compreendera tudo. Fora esfaqueado inexplicavelmente por um neurótico anônimo (como ele)? e por uma circunstância jornal(ética fora notícia em todos os veículos de comunicação do país, destaque nas páginas policiais dos matutinos: ESCRITOR ESFAQUEADO BRUTALMENTE À LUZ DO DIA, ESCRITOR ASSASSINADO INEXPLICA VELMENTE,. TENTATIVA DE ASSASSINATO AO ESCRITOR PROVOCA DEBATES CONTRA A VIOLÊNCIA URBANA. . .

Os títulos variavam de acordo com a linha de cada jornal, mas uma palavra era comum a todos eles: ESCRITOR. Na televisão, a repercussão do caso ocupava os espaços nobre do jornalismo, provocando enquetes e entrevistas com especialistas do comportamento humano. Em todos os veículos de massa, eram destaques trechos de sua obra: frases de alguns contos (algumas ainda com o sangue no original, as fotos ampliadas), diálogos de um romance e alguns poemas, todos falando do absurdo da vida, da fatalidade da existência, da ineficiência do homem diante de si mesmo.

Bruno passou a entender o paradoxo do seu drama, o que não conseguira durante meses de contatos exaustivos com as editoras, entidades culturais, gráficas e firmas comerciais, realizara instantaneamente naquela tarde fatídica em que suas esperanças exauriam-se, naquela cena de sangue niilista em plena agitação metropolitana: uma publicidade bombástica em torno de sua vida e de sua obra. Os repórteres queriam ouvi-lo (Quem era Bruno? De onde veio? Conhecia o assassino? Por que sua obra, de profunda análise existencial, ainda permanecia inédita?…

Bruno compreendera que a partir daquele momento sua vida e sua obra viveriam em simbiose, uma na outra, para que tantas vidas pudessem refletir-se nelas, em busca de si mesmas. Era um escritor, sim, (em mito e talento, como exigem a crítica e o público, sedentos de mistérios e originalidades). Mas do fundo de sua alma, antes que os repórteres fizessem as suas perguntas, Bruno interrrogava-se mentalmente: “EU SOU UM ESCRITOR, encontrei minha identidade, mas ele, o meu anjo da morte (ou da vida?), a faca anônima que me atingiu como um raio, ele, quem o é? Onde está? Por que me esfaqueou?”
Fosse quem fosse, Bruno o perdoara, era seu amigo, encontraria uma justificativa para o seu ato.

 


A CARTA

 

Estou só. Só e solitária, com todas as ações e reações que trazem a solidão. Eu não sei porque as coisas para mim caminham de modo diferente.

Quando surge algo bom não demora e vem um caos de desencontros e erros. Ontem, aliás, desde alguns dias, fiquei inquieta, angustiada, querendo engolir o tempo sem mastigar. Esperando o amanhã chegar para te ver. E o amanhã se tornou ontem, e eu não te vi, nem te toquei, nem te amei, somente chorei. Senti uma dorzinha aqui dentro, como quando a gente está com vontade de fazer algo e não identifica o que é, ou não pode ter, ou fazer; ou quando a gente está com fome e não tem o que comer (eu nunca te falei isso, mas também já passei fome, não uma fome faminta de não ter absolutamente nada para comer, mas foram períodos negros). Aliás, tem muitas coisas que você não sabe de mim, o que pode te afetar, porque você tem uma idéia um tanto oposta de minha vida, tipo “’aparências” mas foi sempre assim que as coisas aconteceram comigo, sempre tudo aparentemente, coisas que me deixaram um legado de conflitos. Eu não sou nada disso do que você pensa. Nem sei porque estou te falando isso. Pode não acreditar, mas é a primeira pessoa que sabe dessas minhas queixas, que vislumbra esse meu outro lado, esse capítulo visto, revisado e arquivado de minha vida.

Sabe, tenho andado com medo, medo da solidão, porque ela liberta outros medos. Medo do escuro, medo de dormir e sonhar com uma bola enorme que vem rolando, rolando, até me esmagar. Medo de assombrações, de barulhos estranhos no silêncio, do tic-tac do relógio, medo de gritos, de porta de guarda-roupa aberta, de bicho entrar no meu ouvido enquanto durmo,. de ficar com os pés ou mãos fora da cama, de olhara mulher com flores nas mãos, de sentir a presença de um preto forte do meu lado, de tanta coisa que me alucina. . .

Sabe, meu amor, eu pareço forte, mas não sou, estou precisando de psicanalista, análise, sei lá o quê, para me libertar dessas neuroses que se agravam mais e mais no decorrer do tempo. Estou precisando de ti, de tuas palavras, do teu apoio, dos teus carinhos, de tua maneira inexplicável de fazer-me bem. Estou em divida contigo, não tenho te oferecido muito de mim, pela minha condição de prisioneira. Mas vou te ligar amanhã, e estou rezando para eu não começar brigando (estou com medo de que já tenhas me esquecido), nem você me venha com aquelas palavras brancas (brancas-neve-gelo-frio) como da última vez em que te ofendi.

Botei minha mão na barriga agora, e sabe o que senti? Vontade de ter um filho teu. Só para ver como seria, para dar-lhe umas palmadas, para pagar as que você me dá (estas palmadas de incerteza, de profundo enigma, de subjugar-me aos teus mistérios). Estou brincando. Sou contra bater em criança. Mas a verdade é que você bate em mim, bate sem me tocar, e dói fundo, uma dor indizível.

Estou ruim meu amor, estou tão ruim que chorei a noite toda e gritei como uma criança. E acho que estou mais assim porque não pude te amar ontem, ter te encontrado depois de tanta ausência. Estava bem disposta para te amar mais vezes, porque você reclamou naquele dia quando só fizemos três. Até calcinha nova eu coloquei só para te ver. Passei a tarde viajando em sonhos, pressupondo o que poderíamos fazer. E no entanto, estou sem você. Estou com vontade de ir para praia e banhar nua, correr, descarregar um pouco, estou com vontade de fazer amor contigo (Do vou want to sleep with me now?). Porra! estou com a cabeça estourando e o coração batendo forte de saudade. Eu te amo! Te amo porque você me penetra (no físico e na alma) e não sinto dor, e se sinto, há uma felicidade no sofrer.

Eu não sei se você está entendendo o que estou dizendo, eu só estou com vontade de te escrever como se estivesse conversando contigo, porque cara a cara estas palavras me fugiriam. Todas as vezes que conversamos, sinto vontade de te dizer muitas coisas e termino dizendo besteiras, o que às vezes deve ter feito você me achar uma débil mental.

Quando estou assim, sinto vontade de botar uma bomba nesse mundo e acabar tudo. Comigo, principalmente. Estou com vontade de dormir para não ter consciência desse escuto que me envolve agora. Essa solidão no meio de tanta gente.

Sabe, se algum dia eu te esquecer, deixar de te amar, eu quero que você seja sempre meu amigo, sempre. A possibilidade de um dia ficar sem você para agüentar meus repentes de grossura, de violência, de desabafo, de tudo, me assusta. Acho que ficaria perdida. Você se tornou importante demais para mim, sinto vontade de falar tudo que se passa comigo: meus grilos e minhas alegrias. Você é a minha estrela, que sempre acende, quando tudo está escuro e sinto medo. Eu confio em ti, mesmo não querendo confiar, porque tudo me faz desacreditar que existe algo ou alguém real, tão real e verdadeiro como você. E se às vezes te machuco, é porque tenho medo de ser machuca da primeiro: meu instinto animal, o meu lado selvagem que grita e é mais forte que o racional.
Às vezes eu queria que você me esquecesse, porque tudo é tão complicado, porque te faço sofrer. Mas o meu egoísmo quer que você me ame mais e mais, mesmo eu não tendo quase nada para te dar. Eu só quero que você me ame, ame até estourar. Que você sinta falta de mim, que não procure outras mulheres (eu tenho ciúmes de você, muito!)

Sabe de uma coisa, quero te amar, gritar para todo mundo que eu te amo, quebrar a corrente, libertar-me da vigilância, do pavor (é horrível!). Sei lá! Eu quero tanta coisa e tudo gira em torno de ti!

Por favor, meu amor, eu quero fazer tudo contigo, na primeira oportunidade, amanhã mesmo, agora,. não precisa oportunidade: quero te ver nem que todos nos vejam. . . Estou começando a sentir a cabeça rolar, estou bebendo!

Help me please, I need you! Eu te amo muito!

Ao concluir a leitura da carta (a única que guardara), Marcelo estirou-se na cama, cansado do intenso dia de trabalho, fixou o olhar no teto do quarto e milhões de lembranças flutuaram no espaço. Pareciam fantasmas, vestígios de um paraíso em ruína. E veio nele aquela vontade de reconstruir tudo – o primeiro beijo, os primeiros desejos, todos os momentos sublimes que teve ou poderia ainda ter tido com ela. Mas tudo estava aos pedaços, segmentado pela ausência, divergência, desencontros, mentiras e leviandades encobertas, embora os vestígios de um amor verdadeiro, ainda se propaga-se em cada átomo ao seu redor. “Um grande amor também morre” – pensou, antes de rasgar aos pedaços a carta amarelada pelo tempo. E Marcelo dormiu assim, sabendo que no dia seguinte, de concreto, haveria outros caminhos a seguir, opostos a esse paraíso perdido, pouco a pouco diluído no entardecer de um tempo cada vez mais velho, cada vez mais longe, próximo, muito próximo do esquecimento.

 


 

COMENTÁRIO (IVAN SARNEY)

IMPULSOS DA VIDA E DA MORTE

 

OS contos de ALEX BRASI L constituem reflexões de largo senso crítico sobre o homem e a sociedade de nossos dias; o homem urbano, premido pela contingência da automação tecnológica e sua permanente angústia existencial.

A luta entre EROS e THANATOS, numa sociedade movida pela competição, onde os valores materiais estão predominando e os valores morais, cedendo lugar ao triunfo da mecânica e do poder. Os impulsos da vida e da morte, permeados pela fuga cidade do amor e a fragilidade humana, com seus conflitos e contradições.
A solidão, o medo, ansiedade, estão presentes em suas narrativas, com uma preocupação que me parece clara: a busca da síntese, que conduz ao desenvolvimento dos temas com clareza e objetividade, sem prejudicar a densidade temática.